Nos últimos anos, venho tendo a oportunidade de dialogar com brasileiros de todas as regiões e classes econômicas sobre a questão das cotas raciais. Independente da região ou o local que a pessoa ocupa no segmento sócio-econômico brasileiro, as que são contrárias às cotas raciais têm as mesmas indagações: “por que as cotas não são para os pobres? Ou, as cotas não são anticonstitucionais, pois discrimina os que não são afrodescendentes? Ou, as cotas não são racismo às avessas?”. Entendo estes questionamentos como algo natural, entretanto debater em cima destes questionamentos não seria uma discussão muito superficial sobre algo que é muito complexo?
Quando os contrários ao sistema de cotas raciais afirmam que o justo seria ter cotas para pobres para deslegitimar as cotas raciais, declinam de alguns pontos históricos imprescindíveis para compreender uma questão complexa. Os afrodescendentes – termo que não tem unanimidade entre os defensores das cotas – são descendentes de escravos que vieram para o Brasil da forma mais cruel e desumana que possa existir. Eles eram separados de suas famílias de forma bárbara e nunca mais tinham notícias dos seus familiares. Atualmente, alguns telejornais têm o quadro “desaparecidos”, onde pessoas desesperadas buscam, incessantemente, por algum familiar que desapareceu. Quem não se comove com aquelas pessoas que procuram seu pai, sua mãe, sua irmã ou seu filho? Pois bem, os africanos eram presos e tinham sua família dizimada sem nem ter o direito de sonhar um dia poder encontrar com aquele filho que foi tido em parto complicado ou com aquela mãe que perdeu várias noites cuidando da saúde de sua prole.
No continente africano, quando os futuros escravos eram capturados, os feitores faziam questão de mandar cada membro da família para um lugar ou país diferente, a fim de evitar que tivessem apoio para aumentar a resistência à escravidão. Note-se que eu falo do continente africano, pois os brasileiros afrodescendentes, diferentemente dos brasileiros descendentes de outros continentes, não sabem nem qual o país que pertenceram seus ascendentes. No Brasil há descendentes de alemãs, italianos, portugueses, espanhóis, japoneses, chineses e outros mais, entretanto não se têm descendentes de um determinado país africano, pois todos os capturados eram jogados nos diversos navios negreiros e estes passavam em vários países africanos e tinham como destino diversos países da América Latina. Sendo assim, os brasileiros afrodescendentes desconhecem os países de origem de seus ascendentes e, principalmente, independente de qualquer sentimento, são brasileiros em conseqüência de uma história abominável de extermínios, segregação e escravidão, a qual seus ascendentes foram submetidos de forma obrigatória, diferentemente dos ascendentes de outros locais, que vieram de forma espontânea e muitos receberam terras quando aqui chegaram. Este é o primeiro ponto que as pessoas, que defendem cotas para pobres, em detrimento das cotas raciais, esquecem.
Poderia escrever inúmeros feitos dos negros para o enriquecimento do Brasil, como no cultivo da cana-de-açúcar, algodão, café e em outras atividades, entretanto o segundo ponto que vou destacar, que é ignorado ou ocultado pelas pessoas que são contrárias as cotas, é a participação do negro na defesa, na conquista e na consolidação do solo pátrio-brasileiro.
No ano de 1648, aconteceu à primeira Batalha dos Guararapes, que é considerada a batalha gênese do Exército brasileiro, que foi a batalha que expulsou os holandeses de Pernambuco. Dentre os líderes da batalha de Guararapes, destacou-se Henrique Dias. Ele era negro e recebeu a patente de governador dos crioulos, negros e mulatos do Brasil. Travou combates com os holandeses em Pernambuco, Bahia, Alagoas e Rio Grande do Norte, não perdendo sequer uma batalha.
Henrique Dias estabeleceu-se numa estância no contorno do Recife e da cidade Maurícia que era a mais próxima dos inimigos. Ficava tão perto dos holandeses que, às vezes, o duelo não era com munição e sim com palavras de desafio e injúria. Da sua estância, ele realizou várias investidas importantes contra os batavos. O local foi atacado diversas vezes pelos flamengos, porém eram sempre rechaçados.
Com a rendição do Recife, em 1654, Henrique Dias, ao contrário de outros militares que combateram os holandeses, não recebeu as recompensas que lhe eram devidas, tendo que viajar a Portugal, em março de 1656, para requerer a remuneração atrasada dos seus serviços. Passou seus últimos anos em Pernambuco, morrendo em extrema pobreza no dia 8 de junho de 1662, no Recife, sendo enterrado por conta do Governo em local desconhecido. Se o governador dos crioulos, negros e mulatos teve este fim, como deve ter sido o fim dos demais negros que lutaram, neste período, em prol da defesa do Brasil?
Rafael Pinto Bandeira é tido como um dos maiores nomes na consolidação das fronteiras da região sul do Brasil, pois ele foi o comandante das tropas que expulsaram os espanhóis da região sul do Brasil. Rafael Pinto Bandeira era tido como um comandante muito generoso com seus comandados, pois ele tinha o hábito de doar parte das terras conquistadas em batalhas para os seus seguidores, entretanto nada foi dado aos negros e estes foram os maiores responsáveis pelas vitórias conquistadas por Rafael Pinto Bandeira, conforme pode-se depurar do depoimento de um sargento espanhol que lutou à época: eles destemiam a morte e eram invencíveis nas batalhas. Os negros, que aqui bem pertinho da onde estou neste momento, Bagé-RS, no Forte de Santa Tecla, foram imprescindíveis na expulsão dos espanhóis do território brasileiro de Santa Catarina até o extremo Sul do Brasil. Ah... isso não se acha nos livros de História do Brasil, pois mais uma vez o negro não teve seus valores reconhecidos e os benefícios da sua labuta ficaram para os brancos.
Revolução Farroupilha foi uma revolução que teve negros lutando pelos dois lados e o “inacreditável” aconteceu, foram eles os únicos perdedores, mesmo estando em lados opostos. A Revolução Farroupilha objetivava a criação da “República do Rio Grande”. Um dos líderes das tropas revolucionárias era o general Netto, que conseguiu, através da promessa da criação da república, onde todos os homens seriam iguais em direitos e não haveria mais escravidão, ter vários negros libertos e escravos fugidos compondo seu exército motivado pelo sonho da liberdade. Do lado imperial, que tinha como escopo acabar com a revolução, destacava-se a figura de Caxias como o grande comandante das tropas legalmente constituídas. O seu exército também tinha escravo lutando motivado pelo mesmo objetivo, o da liberdade após a batalha. Terminada a batalha, os revolucionários não-negros ganharam terras e alguns benefícios; já os negros, os que não morreram em combate, ficaram moribundos ou foram perseguidos pelas forças imperiais, pagando caro pela frustração do sonho de liberdade. Já os negros do lado imperial, os que sobreviveram ao combate, foram incorporados, obrigatoriamente, as fileiras do exército, pois foi a única saída vislumbrada por Caxias para que eles não voltassem à condição de escravos. Ao término da batalha, Caxias recebeu a ordem para mandar os negros para a fazenda imperial em Petrópolis e vislumbrando que eles voltariam à condição de escravo, Caxias reengaja-os nas fileiras da Força. Conforme pode-se depurar, a Revolução de Farroupilha não teve tropas derrotadas e sim etnia, pois mais uma vez os negros foram as únicas vítimas de um sistema brasileiro perverso e discriminante.
Quanto a Guerra do Paraguai, deixo aqui registradas as minhas escusas a todos os negros que tombaram ou sobreviveram na Guerra do Paraguai, onde foram tratados como verdadeiras “buchas de canhão”, por não tecer comentários mais detalhados sobre eles. Negar o racismo no Brasil é apagar da história brasileira a resistência imposta por João Cândido (“Almirante Negro”) que só no ano passado (quase cem anos depois da Revolta da Chibata) foi homenageado com um monumento na Praça XV na cidade do Rio de Janeiro (aproveito a oportunidade para parabenizar todos os cariocas por esta mais do que justa homenagem); é ignorar que na primeira metade do século XX, existia lei que proibia o ingresso de negros na escola de oficiais do Exército; é fingir que nunca existiu na história brasileira a “política do embranquecimento”; é chamar de farsa a história de vida, do mais recente cidadão baiano, Abdias Nascimento que com seus 95 (noventa e cinco) anos é uma lenda viva da resistência contra o racismo da nossa sociedade; é questionar as inqüestionáveis pesquisas do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), que mostram as disparidades dos salários entre brancos e negros que ocupam o mesmo cargo; negar o racismo no Brasil é negar a existência de mais da metade da população brasileira que são descendentes de africanos, que vieram para o Brasil como propriedade dos brancos e viveram o horror de serem escravizados, humilhados, degredados, açoitados e muito mais coisas que causam ojeriza a qualquer cidadão sensato; negar o racismo no Brasil é manter os entraves que impedem o nosso desenvolvimento com Nação. Logo, para ajudar a acabar com o racismo: RECONHEÇAMOS O RACISMO NA SOCIEDADE BRASILEIRA.
Uma vez reconhecido o racismo, não podemos deixar de discuti como amenizar as atrocidades seculares cometidas contra a população negra, como acabar com este “fosso” histórico que separa negros e brancos, daí surge a questão das cotas raciais, não só para dar sonho a quem nunca sonhou em ser um “DOUTOR”, mas também para da oportunidade a sociedade de terminar com o insulto social de achar que os negros jovens que andam com roupas caras, cordões de ouro, carros importados, não são doutores e sim marginais. Ah... por favor, não venham me dizer que o meu país é miscigenado – não existem brancos e negros e sim brasileiros – e que é eu que estou sendo preconceituoso e racista PORQUE SOU A FAVOR DAS COTAS RACIAIS!!!!!